Crónicas de Jorge C Ferreira | Venetas

Venetas

Ter vontade de viver. Estar satisfeito com o que se tem. Saber distribuir alegria. Ter quem nos dê um abraço, quem goste de nós. Sabermos gostar dos outros. Ter saúde. Que mais necessitamos?

Por vezes andamos atrás do supérfluo, do não vale um corno. Coisas sem interesse algum. Bugigangas. O novo modelo de telemóvel. Um carro com mais um botão. Um modelo novo de sapatos, para juntar aos mais não sei quantos que andam lá por casa.

Não, a mim, não me apanham nessas curvas. Podem fazer os saldos que quiserem, as promoções que entenderem, os dias e noites especiais que lhes apetecerem. Não entro nisso. Foi um peditório para onde já dei. Foi um tempo que passou. Curei-me.

Nunca tive carro ou carta de condução. Quase todos os taxistas da Parede me conhecem. Vão acompanhando o meu envelhecimento e o crescimento do meu neto. Desde que me mudei para o centro da vila, vivo numa casa arrendada, ser proprietário sempre me incomodou, vêem-me menos dentro dos seus carros. Deixei de ser um cliente assíduo desde que me mudei para o centro da vila. Fui à praça de táxis avisar que não estava zangado com eles, apenas tinha decidido mudar de vida. Agora vivo numa casa arrendada. Ser proprietário sempre me incomodou.  

A minha ligação ao táxi vem desde novo. Os meus amigos de juventude, ainda hoje quando nos encontramos, falam das corridas sem nexo que eu fazia, trajectos tão curtos que enervavam qualquer profissional da coisa.

O meu neto, quando era pequeno, dizia que o Pai tinha um Citroen, a Mãe um Toyota e o Avô um táxi. Ainda hoje, por vezes, o vou buscar à escola de táxi, peço ao taxista para esperar e regressamos os dois. Eu sei que ele adora isso. São cinco euros e tal que me dão gozo gastar.

Há coisas que o meu filho e a minha enteada ainda hoje guardam e por vezes nos falam nelas. Vou só contar uma: deviam ser os únicos na escola que ainda tinham televisão a preto e branco. De vez em quando falavam nos programas e nas cores que os colegas viam em casa. Assim como que a arremessar o barro à parede a ver se cola. Um dia passámos pelo atelier de um pintor e saímos de lá com um original. Chegámos a casa e chamámo-los. Desembrulhámos o quadro e mostrámo-lo. A  apresentação foi simples: «como vocês andam sempre a falar na televisão a cores, decidimos comprar este quadro. Tem cores, é uma única imagem, mas se olharem bem para ele todos os dias, cada dia verão uma coisa diferente.» Foram embora para o quarto, sem uma palavra. Acho que ainda não nos perdoaram!

A minha relação com o imobiliário também é complicada. Primeiro que a minha mulher me convencesse a comprar uma casa foi um castigo. Um tempo houve em que, sem qualquer lógica, comprar casa era mais barato que alugar. A contragosto assinei a escritura.  Mas enquanto não aluguei uma para viver não descansei. Incomoda-me ser proprietário. Manias.

Só há duas coisas onde fraquejo: os livros e as obras de arte. Sou compulsivo. Tenho a biblioteca num caos e alguns quadros sem parede. Uma vergonha. Mas a arte, escrita, desenhada, pintada, esculpida, é um fascínio que quase me mata.

Sou o que se chama uma pessoa simples, apenas tenho alguns gostos complicados, e é tudo.

«Olha que é preciso muita paciência para aturar essas tuas venetas.»

A voz de Isaurinda.

«São coisas minhas, quando implicam os outros negoceio.»

Respondo.

«Está bem abelha! Conheço-te bem…»

De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Jan/2018(152)

 

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36 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Venetas”

  1. Como te compreendo! Os meus pais não tinham carro. Até deixaram caducar as cartas de condução! Livros, sim: havia milhares, comprados pelo meu pai. Aos quais eu fui acrescentando muitos outros. Quanto ao televisor a cores, também fomos os últimos de entre os conhecidos a ter um.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. Tanta coisa que nos liga. Não implica ser melhor ou pior. Ser diferente, ter convicções, prioridades. Tentar aprender com a vida. Abraço

  2. Isabel Soares

    Excelente texto. Gosto das venetas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Que boas são algumas venetas. Abraço

  3. Manuela Moniz

    Gostei muito deste texto, JORGE! Tão simples e tão belo que é! Tal como tu, meu amigo.

    Também tenho venetas, muitas , mesmo. Tive carros, jipes, barco, casa na Ilha, em Lisboa e na Praia de Sta Cruz. Viajei muito, continuo a ter livros, imensos livros, obras de artistas penduradas nas paredes. Uma família e era feliz.
    O ter, o possuir há muito que deixou de me seduzir. Dois filhos e quatro netos, amigos do coração preenchem a minha vida. Não dispenso o meu carro, dá-me liberdade. Desapego-me com facilidade de tudo o que dantes me seduzia. O supérfluo não mais entrou na minha casa. Gosto muito mais de mim, assim…
    Continuo a sonhar, a mimar, a partilhar e a querer viver numa casa mais pequenina com um alpendre virado para o mar e vasos com flores criadas por mim.
    Beijo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Tão bom seres como és. Tão bom estares aqui neste espaço de laços e nós. Abraço

  4. Ana Pais

    ” Venetas” – um belo mote para partilharmos neste belo cantinho literário. Adorei seu texto, adoro sempre lê-lo. Os seus gostos tão simples e nobres que são a arte escrita e desenhada. As minhas venetas são igualmente os livros que transbordam as minhas estantes e mesinhas de sala. Os bordados de ponto de cruz também o são, venetas deliciosas. Hábitos de minha adolescência em que aprendia a bordar nos serões com a minha avó. No tempo que não havia televisão no meu outro País. Afectos e apegos aos filhos e a todos que me rodeiam para mim é o essencial. Obrigada pela partilha , Mestre. Uma boa semana e seja sempre feliz . Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. Que boas são as nossas venetas. Que salutar tê-las. Abraço

  5. maria fernanda morais aires gonçalves

    Pois eu, se fosse rica arranjava um “John chauffeur russo”, para me levar a Madrid, Barcelona, Paris, sul de Espanha, Galizia, tudo aqui pertinho, que eu gosto mesmo é de ir.Se fosse muito muito muito rica, um aviãozinho a jacto para dar umas voltas. Não gosto de conduzir nem ligo nenhuma a carros mas gosto de ir e agora tens também a uber além dos táxis. Eu sei andar muito bem em todos os transportes do país desde o cacilheiro ao metro, passando pelo tuc-tuc- electrico, autocarro, quem me dera ter cá os de primeiro andar…adoro livros, cd’s, arte, este fim de semana passei praticamente 24Horas na Gulbenkian e hoje já fui à aula de arte portuguesa, somos todos alunos na idade de ouro e a professora também. Fomos todos convidados para a última aula oficial dela na Faculdade de Belas Artes no dia em que fez setenta anos. A sabedoria que tem a Professora Margarida Calado, uma energia de pessoa iluminada pelo conhecimento que transmite. Aqui tens as minhas venetas…No meu dia de aniversário vou logo pela manhã ao museu de arte antiga. Vou ver as Obras de arte que não tenho em casa…só tralha….vou aprendendo a destralhar, sabes? estamos sempre a tempo. Obrigada pelo teu texto, tão bom, como sempre!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado. Fernanda. Sempte belos os teus comentários. Fico tão encantado pelas tuas palsvras., pelo teu amor à arte. Abraço

  6. amélia correia vilela

    fUJI .os filhos tinham 12 anos ,nem deram conta da separação .melhorando ,de ano para ano o desempenho escolar, fizeram amigos ,amigos hoje ,vizinhos, casaram com um casamemto hoje ,bom, formaram-se com distinção, não traumatizaram com divórcio,viveramna crista da onda .a mãe sacrificada, mas cultivando o ser em vez do ter.nasceram netos ,otimos .mas a vida é madrasta e as pessoas más incomodaram estes descendentes de um criminoso ( ? )poiszombavam do pai ,ignorar totalmente as crias e os filhos das crias .é impossível passar despercebido, sendo filho de um político .nós estamos bem, mas temos vergonha do mundo cruel .isto ,afirmado deve ser verificado se é verdade .V EXCL ,VAÕ FICAR INDIFERENTES ÀDOR ?venetas minhas

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Amélia. Que corajoso e frontal o seu comentário/depoiamento. Fico muito grato. O meu abraço

  7. maria rosa matos

    Maravilhosas venetas, Jorge!

    Custa-me abdicar do carro. Está sempre ali.

    Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Rosa. Belas são as venetas. Abraço

  8. Ivone Teles

    Olá amigo Jorge. Adorei. Também tenho as minha venetas, mas tenho casa própria por circunstâncias da vida, cada um tem o seu carro ( que eu quero independência) e sou, como sabes uma simples. Depois, sou como tu. Desde sempre o meu estilo casual/ prático no vestir e calçar . Eu não gosto de estragar e está sempre tudo actualizado, porque duram, duram, duram..A mim também não me apanham nas curvas. Quando cá vieste deves ter percebido estas minhas venetas.

    Pois gostei deste texto que diz comigo e fico a aguardar os de amanhã. Estou cansadota, mas já tenho consulta para a semana. Só isso justifica não ficar aqui mais um bocadinho.. Homem de venetas, a tua amiga/ irmã também as tem e a principal é estar-se maribando para o TER.( Falo de alto, porque tenho o essencial. Mal de quem o não tem. Beijinhos muito amigos <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Que bom é ter a tua presença neste espaço. Um espaço de um pobre escrevinhador. Tão grato pelas tuas palavras. Abraço

  9. Cristina Ferreira

    Mesmo com todas as tuas venetas ou também por elas, Sabes que me és uma inspiração. A Isaurinda também. Recebam um abraço enorme de muita ternura e admiração. Bem hajam.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sempre generosa nos comentários. Abraço

  10. Nelma Moreira

    VENETAR é vida, é a sensação de ser livre em seguir as nossas paixões. Os impulsos são sempre uma rotina e nada nos faz separar ou parar – Faço vénias a alguma maneira de respirar -nos como seres humanos e não como robots. E não é que não goste deles ou que não os ache uma invenção da prática futura. Ninguém nos ama mais do que nós mesmos não é assim ?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Nelma. Venetar que lindo termo. Como gosto do seu comentário. Abraço

  11. AMÉLIA CORREIA VILELA

    poisas minhas venetas são as minhas medalhas .tenho carro desde os dezoito anos, porque ia para a escola às 6 h com um gasómetro, acompanhada .tive 2 filhas e porque era casadacom um cretino,embora ,diziam (todos )amada ,precisei sustentar a casa ,na totalidade incluindo o cretino.ele tratava-me com gentileza .fui ficando .algumas mulheres da minha época, eram verdadeiras artistas ,na proeza de elevar umacasa, os filhos, fazendo milagres com poucos recursos .educação primorosa eraprioritária .o cretino foi eleito ,por mérito presidenteda câmara .teve a humildade ,ou cínica hipocrisia, de atribuir á esposa —eu —oresultado eleitoral eu era bonita, talentosa .ajudei-o a levar a vida .sacrifiquei-me .quando não aguentei a fome que passava ,fuji.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Amélia. Que história nos conta. Vida difícil. Mulher corajosa. Um abraço.

  12. Branca Maria Ruas

    És uma pessoa com bom gosto e que sabe dar valor ao que é importante na vida.
    O carro foi muito importante para a minha independência. Sabes que, há muitos anos, quando fiz 18 anos, o meu pai emancipou-me (na altura era preciso…) para eu poder ter carta de condução. Apesar de seres pouco mais velho que eu, sendo rapaz, não te sentias inseguro quando saias à noite. Ser raparigas era muito diferente. De um dodo geral tinham muito pouca liberdade mas os meus pais nunca se opuseram a que eu saísse. Confiavam em mim. Ensinaram-me que só existe liberdade com responsabilidade. Eu ia para todo o lado. O carro era a minha protecção. Habituei-me a ele e faz-me muita falta.
    Quanto ao resto, de facto, acumulamos demasiadas coisas.
    Mas sou capaz de usar roupas e calçado com muitos anos. Desde que me sinta confortável…
    Beijinho, meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Gosto do teu modo de ser. Adorei as tuas palavras. Quanto ao carro é uma longa discussão. Abraço

  13. Fernanda Luís

    Sempre a surpreender, ahah! Revejo-me em muitas situações.
    Eu ando diariamente de transportes públicos, quase sempre de autocarro. Fartei-me do Metro, vida de toupeira. Já há muito que não tenho carro, por opção. Despesa grande. Canalizo a poupança para viagens.
    Vivo num bairro de Lisboa, com vida própria, a caminho dos 45 anos, num prédio de quase 70 anos. Por opção. Não preciso de lareiras, garagens, etc., mas sou proprietária, quase a terminar o mandato de coadmistradora do condomínio que é a parte mais chata.
    Só tenho uma televisão, a cores. Tenho computador há mais de 35 anos. O primeiro foi um balúrdio, íamos acrescentando acessórios, para o meu marido fazer a tese de mestrado e trabalhos de investigação. Opções!
    Aprecio o simples, mas sou seletiva de acordo com as prioridades.
    Conto isto porque o Jorge deve gostar de conhecer o perfil dos amigos virtuais?
    Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Decisões que eu aprecio as suas. Viajar é essencial. Mas quem sou eu para dar licções de alguma coisa? Abraço

  14. Célia M Cavaco

    A excentridade o privilégio incompreendido das grandes almas puras e simples.
    Adoro essa cumplicidade,livros,cores e paredes vazias,nada me é estranho. Meu amigo,sempre te chamarei o meu amigo de gostos tão simples que é de outro planeta,no caso é logo ali,tão perto.”Parede” um lugar por si só diferente.Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Sim, o teu amigo Osga. Sempre por aqui às voltas com as suas inquietações. Abraço

  15. Regina Conde

    Venetas, caprichos, o que seja um tanto peculiar quando compulsivo. Existem vários aspectos no teu texto que reiteram o que sei de ti. És um ser maravilhoso. Como dizes no início tens o mais importante que se pode desejar. O que nos vais deixando de ti diariamente e nestas crónicas será um livro excelente. Ainda nos irás surpreender com mais uma ou outra veneta. Um abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Tenho os meus eternos defeitos e os meus eternos desassossegos. Abraço

  16. Nora

    Adoro minhas venetas…rsrs. Tipo não ter televisão, não ter ventilador, e assim vou levando.. Por isso identifiquei-me com as tuas venetas. Beijo, Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Nora. Continue com as suas venetas. Nunca desista. Abraço

  17. Esmeralda Machado

    Olá amigo! Gosto das suas venetas, parece que já somos dois, à excepção da casa e da televisão. Um grande abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. Somos mais, felizmente. Abraço

  18. Idalina Pereira

    Uma vez mais uma excelente crónica e com ela fiquei a “conhecê-lo “um pouco mais.
    São vivências, desapego daquilo que não lhe é importante…
    De vez em quando penso que se fosse agora não comprava ou fazia determinadas coisas. Gosto de livros e de os comprar, de lhes sentir o cheiro.
    Também tenho venetas, como diz a Isaurinda.
    Boa semana. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. O que fizemos está feito. São ensinamentos para a vida. Gostei muito das suas palavras. Abraço

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